Jorge Bucay
Deixa-me que te conte. Os contos que me ensinaram a viver.
Cascais, Editora Pergaminho
Damião é um rapaz curioso e inquieto, que deseja saber mais acerca de si mesmo. Esta busca leva-o a conhecer Jorge, “o gordo”, um psicanalista muito invulgar que o ajuda a enfrentar a vida e a encontrar as respostas que procura através de um método muito pessoal: em cada sessão, conta-lhe um conto. São contos clássicos, modernos ou populares, reinventados pelo psicanalista para ajudar o seu jovem amigo a esclarecer as suas dúvidas. Trata-se de histórias que nos podem ajudar a todos a compreender-nos melhor a nós próprios, a ponderar as nossas relações e a ver os nossos temores com outros olhos.
(Excerto)
O azulejo bumerangue
Naquele dia, eu estava muito irritado. Estava de mau humor e tudo me incomodava. A minha atitude no consultório foi lamurienta e pouco produtiva. Detestava tudo o que fazia e tudo o que tinha. Mas, acima de tudo, estava aborrecido comigo mesmo, como num conto de Papini que o Jorge me leu, naquele dia eu sentia que não conseguia suportar «ser eu mesmo».
— Sou um estúpido — disse-lhe (ou disse para mim próprio). — Um imbecil… Acho que me detesto.
— És detestado por metade da população deste consultório. A outra metade vai contar-te uma história.
Era uma vez um homem que andava sempre com um azulejo na mão. Tinha decidido que, quando alguém o irritasse a ponto de ficar cheio de raiva, lhe daria com o azulejo na cabeça. O método era um bocado troglodita, mas parecia eficaz, não achas?
Acontece que se cruzou com um amigo muito prepotente, que lhe falou com maus modos. Fiel à sua decisão, o homem pegou no azulejo e atirou-lho à cabeça.
Não me lembro se lhe acertou ou não. Mas acontece que, depois disso, o facto de ter de ir buscar o azulejo depois de o arremessar lhe pareceu um bocado incómodo. Decidiu, então, inventar o «Sistema de Autopreservação do Azulejo», como lhe chamou. Atou um cordel de um metro ao azulejo e saiu para a rua. Isto permitia que o azulejo nunca se afastasse demasiado, mas rapidamente o homem constatou que o novo método também tinha os seus problemas: por um lado, a pessoa destinatária da sua hostilidade tinha de estar a menos de um metro de distância e, por outro, depois de atirar o azulejo, era obrigado a recolher o fio que, além do mais, muitas vezes se enredava e fazia nós, com todas as chatices que daí decorriam.
Foi então que o homem inventou o «Sistema Azulejo III». O protagonista continuava a ser o mesmo azulejo, mas, neste sistema, em vez de estar atado a um cordel, estava atado a um elástico. Agora, o azulejo podia ser lançado uma e outra vez e voltaria sempre para trás, como um bumerangue, pensou o homem.
Quando saiu de casa e recebeu a primeira agressão, atirou o azulejo. Mas foi um fiasco total: quando o elástico entrou em acção, o azulejo voltou para trás e acertou em cheio na cabeça do próprio homem.
Tornou a tentar e levou segunda vez com o azulejo na cabeça por ter medido mal a distância.
À terceira, foi por ter atirado o azulejo fora de tempo.
A quarta vez foi muito sui generis, porque, depois de ter decidido bater na vítima, arrependeu-se e tentou protegê-la, acabando por levar com o azulejo na cara.
Ficou com um galo enorme…
Nunca se soube porque é que o homem nunca conseguiu acertar com o azulejo em alguém: se foi por causa das pancadas que levou, ou se por uma alteração no seu ânimo.
Todas as pancadas acabaram sempre por ser auto-infligidas.
— Chama-se a este mecanismo retroflexão: basicamente porque consiste em proteger os outros da nossa própria agressividade. Sempre que o pomos em prática, a nossa energia agressiva e hostil detém-se antes de chegar ao outro, através de uma barreira que nós impomos a nós próprios. Esta barreira não absorve o impacto, limita-se a reflecti-lo. E toda essa irritação, todo esse mau humor e agressividade se viram contra nós mesmos, através de comportamentos reais de auto-agressão (autolesionar-se, enfardar-se de comida, consumir drogas, correr riscos desnecessários) e, outras vezes, através de emoções ou sentimentos dissimulados (depressão, culpa, somatização).
É muito provável que um utópico ser humano «iluminado», lúcido e íntegro nunca se irrite. Seria óptimo para nós se nunca perdesse-as estribeiras, no entanto, uma vez que sentimos raiva, ira ou irritação, a única maneira de nos livrarmos delas é arrancando-as cá para fora transformadas em acção. Caso contrário, a única coisa que conseguimos, mais cedo ou mais tarde, é irritarmo-nos com nós próprios.
endereço: http://contadoresdestorias.wordpress.com/2009/11/19/o-azulejo-bumerangue-jorge-bucay/
imagem: santiagoatelier.blogspot.com
14 comentários:
É legal porque através de histórias fica mais fácil perceber como acontecem os distúrbios na mente.
Beijos
Na verdade temos é MUITO receio de nossa própria agressividade e da destruição que esta pode causar...Assim, atiramos"aos outros" aquilo que deveras sentimos.Boa maneira tb de nos sentirmos"bonzinhos",perante os outros e, principalmente,nós mesmos.
Mas o "bumerangue" está lá.Pronto para atingir o ponto de partida.
Melhor mesmo é transformar em ação(positiva de preferência)esta energia toda.
Nossa,escrevi um "tratado"...mas o assunto é fascinante.
Beijos terapeuticos
Jeanne,
É mesmo!!!
beijo,
Jorge
Alice
è um forma muito boa de contar sobre as nossas defesas.
VOCÊ É ÓTIMA!!!
Tenha uma semana repleta de alegrias!!
Beijo!
Amigo Jorge, muito bonito este texto... pleno em verdades!
Obrigada pela partilha... :o)
Beijos, flores e muitos sorrisos... sempre!
Uma linda semana!!!!
Carmem
Sempre grato a sua presença alto astral!
Um beijo de luz,
Jorge
Amigo,
A nossa agressividade pode causar danos irreparáveis e que nos farao arrepender gravemente. É bom aprendermos a controlar os nossos impulsos, na hora da irritacao contar até dez, ou fazer como Chico nos ensinou: beber a água da paz!
Água da Paz
Uma das histórias mais conhecidas a respeito de Chico é a da Água da Paz. Dizem que era muito comum, antes de se iniciarem as sessões no centro espírita Luiz Gonzaga, ocorrerem algumas discussões a respeito de mediunidade, especialmente provocadas por pessoas pouco esclarecidas sobre o assunto. Essa situação começou a provocar certa irritação em Chico, que tentava explicar o que acontecia, mas nem sempre era compreendido.
Num dos momentos de irritação, sua mãe apareceu a ele mais uma vez e ensinou-lhe uma forma simples para acabar com essa situação. “Para terminar suas inquietações”, ela falou, “use a Água da Paz”. Chico ficou contente com a solução e começou a procurar o medicamento nas farmácias de Pedro Leopoldo – sem sucesso. Procurou em Belo Horizonte, e nada. Duas semanas depois, ele contou à mãe que não estava encontrando a Água da Paz, ao que ela lhe disse: “Não precisa viajar para procurar. Você pode conseguir o remédio em casa mesmo. Quando alguém lhe provocar irritações, pegue um copo de água do pote, beba um pouco e conserve o resto na boca. Não jogue fora nem engula. Enquanto durar a tentação de responder, deixe-a banhando a língua. Esta é a água da paz”. Chico entendeu o conselho, percebendo que havia recebido mais uma lição de humildade e silêncio.
Beijos
Desculpe um comentário tao longo, mas é que me lembrei deste conselho do Chico.
Jorge, meu amigo. Como é importante lermos textos como este. Pararmos, analisarmos nosso comportamento e reação diante das situações de conflito. Repensarmos e então, decidirmos pela mudança. Aquela que não só nos favorece, mas aos outros também. Adorei o texto. Beijos e tenha uma semana feliz.
Olá, boa tarde.
FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... está convidando para conhecer uma lenda bastante contemporânea - a do pássaro-cabeça-de-vento.
É só clicar no link http://www.silnunesprof.blogspot.com que você chega até lá rapidamente.
A PAZ .
Saudações Florestais !
Márcia,
belo exemplo o do Chico.
Somos impulsivos e podemos acabar´lesando alguém, que no fim somos os maiores lesados pois entra a consciência.
Um beijo em teu coração,
Jorge
Maria José,
a água da paz é uma excelente sugestão.
Deixar a nossa lingua se queimar com água quente de raiva do que queimar a nossa consciência pelo peso que se cria.
Um beijo, com amor,
Jorge
Silvana,
Obrigado pela sua visita!!!
Saudações urbanas,
Jorge
Cadê você meu bom amigo. Saudades!
Postar um comentário