quarta-feira, 24 de novembro de 2010

NA COZINHA COM IRMÃO BARTOLOMEU


Karin Lamasaki

Situado no último andar da mais alta torre do mosteiro, o quarto do abade Luigi ocupava um lugar estratégico. A escolha do aposento não fora sem motivo, pois o prudente superior fazia questão de ter uma boa visão do mosteiro entregue pela Providência aos seus cuidados.

Naquela manhã, ao olhar pelas janelas, dois monges chamaram-lhe a atenção. O primeiro foi o Irmão Bartolomeu, o qual, subindo a trilha, voltava da cidade a arfar sob o peso de duas grandes alforges repletos de víveres por ele recebidos na feira da cidade.

Esse bom frade era homem simples, de pouca instrução, mas muito piedoso e dedicado. Conseguia os mantimentos e ele mesmo preparava-os, procurando, até onde permitia a pobreza franciscana, servir aos monges a melhor alimentação possível.

Da outra janela, o abade avistava o claustro. Sentado num banco de pedra, estava o segundo monge alvo das suas atenções. Tendo alguns livros empilhados à sua volta, Frei Lucrécio lia entusiasmado um grosso volume de apologética. Ele era quem ministrava as aulas aos jovens noviços, e a sua segurança em matéria doutrinária granjeara-lhe fama nas redondezas, a tal ponto que tanto leigos como religiosos vinham consultá-lo sobre intrincados pontos dos ensinamentos cristãos.

Observando os dois monges, o velho abade pôs-se a meditar na grandeza de Deus, que criava homens tão diferentes, mas fazia-os viver sob o mesmo tecto, irmanados pela mesma vocação, e chamados a servir os seus semelhantes de maneiras diversas.

* * *

No meio daquela tarde, alguém subiu os degraus da torre e bateu à porta do quarto do abade. Era Frei Lucrécio. Com um livro debaixo do braço, pedia uma conversa reservada com o seu superior.

— Então, o que te perturba, irmão?

— Nenhum problema pessoal, mas algo que diz respeito à nossa comunidade, senhor abade. Não podemos aceitar entre nós uma pessoa tão desqualificada como esse… esse Irmão Bartolomeu!

O abade Luigi levantou as sobrancelhas, um pouco surpreso. Que mal teria feito o humilde monge? E Frei Lucrécio continuou a dar argumentos para demonstrar como aquele homem tão ignorante causava malefício à comunidade:

— Ele simplifica tudo! Nunca consegue acompanhar os elevados raciocínios que eu, mestre em teologia, procuro transmitir. Ademais, tem costumes estranhos, como, por exemplo, na ocasião em que tentou ensinar um papagaio a rezar a Ave Maria…

O abade ouviu o monge apresentar as suas queixas com ar perplexo e sem dizer palavra. O seu olhar atento indicava estar a pensar rápido, porém profundamente. E quando o outro terminou de falar, respondeu:

— Pois bem. Tudo quanto me disseste é muito sério. Mas eu gostaria de ter mais dados, antes de tomar alguma atitude. Por exemplo, não sei exactamente o que ele faz na cozinha, quando fica sozinho. Assim, peço acompanhá-lo esta tarde na preparação do jantar, e depois apresenta-me um relato detalhado de tudo o que ele diz e faz. Fica atento a qualquer atitude na qual ele demonstre essa suposta mediocridade, ou ignorância, por si mencionada. Em função disso, tomaremos uma atitude.

* * *

E assim foi. No fim da tarde, o mestre de teologia apresentou-se na cozinha, para ajudar o irmão cozinheiro. Como este nunca discutia uma ordem superior, nada perguntou a respeito. Justo naquela noite, o prato da ceia seria esparguete com molho à bolonhesa. O douto monge observava com atenção tudo quanto o outro fazia. Além da carne picada, havia vários ingredientes que lhe pareciam bem saborosos, como, por exemplo, cebola, toucinho e tomate, este último por ele especialmente apreciado. Quando, porém, Frei Bartolomeu começou a cortar as cenouras, Frei Lucrécio protestou:

— Como? A tantas delícias, acrescentarás essas míseras cenouras? Esse vegetal mesquinho vai alterar completamente o gosto do molho!

— Mas… mas… eu sempre fiz assim! — disse o pobre cozinheiro.

— Pois bem, se quiseres, serve isso para os outros. Para mim, separa uma parte do molho, sem essas pérfidas cenouras.

Enquanto isso, Frei Lucrécio pensava consigo mesmo: “Aqui está, sem dúvida, uma prova da ignorância desse homem, pois em tudo o que ele faz procura acrescentar uma nota de mau gosto, como essa história das cenouras. Amanhã, vou contar isso ao abade”.

Na hora do jantar, todos comeram o esparguete com molho à bolonhesa convencional, excepto Frei Lucrécio, a quem foi servida a parte sem cenouras. Para a sua surpresa, o preparado estava horrivelmente ácido, a tal ponto que ele com dificuldade pôde terminar o prato. Como, porém, tinha sido uma exigência sua, ele comeu tudo sem reclamar…

* * *

Aquela não foi uma boa noite. O molho definitivamente não lhe caiu bem. Ele não conseguiu dormir direito, teve pesadelos e acordou várias vezes com enjoo. Na manhã seguinte, pálido e com olheiras, foi falar com o abade para apresentar o seu relato. Este impressionou-se com o aspecto doentio do douto mestre, o qual então lhe contou o ocorrido com o molho ácido, causa do seu mal-estar.

O experiente abade, sorrindo, disse-lhe:

— Sabe, Irmão Lucrécio, quando fui noviço, trabalhei um bom tempo na cozinha. Aliás, fui eu que pedi a Frei Bartolomeu para fazer o esparguete com molho à bolonhesa ontem. É bem interessante como a culinária, em certas ocasiões, apresenta exemplos úteis à vida religiosa. Na verdade, compor uma boa comunidade muitas vezes é como preparar uma boa receita: exige a sábia combinação de vários ingredientes. Veja o tomate: tem um sabor todo especial e é um dos elementos centrais do molho, mas torna-se ácido facilmente; por isso é necessário colocar junto dele a humilde cenoura, cuja função nessa receita não é dar sabor, mas justamente absorver a acidez do conjunto.

— Irmão Lucrécio, acredito que estejas a compreender bem esta comparação, mas quero deixá-la ainda mais clara. Assim como o cozinheiro na preparação da receita, também eu, na função de abade, devo cuidar de monges que me são preciosos pela sua sabedoria e doutrina, embora sejam por vezes “ácidos”. E para isso, ajuda-me dispor também de outros que não têm muita proeminência, mas, pela sua simplicidade, agem como as cenouras no molho à bolonhesa suavizam o conjunto. Entendes agora, irmão, porque me alegra poder ter-te e Frei Bartolomeu juntos na nossa comunidade?

Frei Lucrécio aceitou com humildade as palavras do seu virtuoso abade. Reconfortado, agradeceu o ensinamento e, após a bênção, dispôs-se a sair. Quando estava já à porta, disse-lhe ainda:

— Ah, um detalhe a mais, irmão: o molho ficou ácido também por não ter sido cozido durante o tempo suficiente; na culinária como na vida cristã, a paciência é uma virtude fundamental para que tanto o alimento quanto o convívio tenham sabor suave e agradável…


In Arautos de Fátima Maio 2007



texto - http://contadoresdestorias.wordpress.com/2007/11/04/na-cozinha-com-irmao-bartolomeu/

imagem - acnsf.org.br

25 comentários:

Gislene disse...

Olá, Jorge!

Belo texto e rico ensinamento!

Um abraço,

Gislene.

ELIANA-Coisas Boas da Vida disse...

Lindo texto!
Existem muitos frei Lucrécio por esse mundão de Deus,de vez em quando encontro com algum pelos caminhos dessa vida maravilhosa!
BEIJO

© Sara Marques disse...

Querido Jorge;
Que Belíssima Reflexão!
Eu acho que no momento estou mais para Cenoura,...hahaha
Amei.
Bjs.

Bloguinho da Zizi disse...

Jorge
Independente da religião o homem se deixa levar por aparências.
O ego toma a frente e a cegueira se instala.
Mas o bom é que sempre tem alguém com mais visão, com muita paciência e sabedoria que põe ordem na bagunça e ajuda a limpar a vidraça que se criou.

(Eu particularmente adoro uma cenoura, principalmente crua.)
rsrsrs

Beijinho amigo

Hana disse...

Oi amigo anjo, li seu texto, muito bacana o ensinamento, e a sabedoria do Monge que lição né.Quero convidar vc a conehcer meu espaço Japão cultura e espero que goste, pois lá eu falo sobre a cultura, a arte em fim vários temas do Japão.
http://japao-cultura.blogspot.com/
\vou cantar um pouquinho...
Eu quero apenas olhar os campos,Eu quero apenas cantar meu canto,Eu só não quero cantar sozinho,Quero levar o meu canto amigo,A qualquer amigo que precisar.Eu quero apenas um vento forte,Levar meu barco no rumo norte, E no caminho o que eu pescar,Quero dividir quando lá chegar, Eu quero crer na paz do futuro,Eu quero ter um quintal sem muro. Eu quero amor decidindo a vida,Sentir a força da mão amiga, O meu irmão com sorriso aberto,Se ele chorar quero estar por perto, Venha comigo olhar os campos,Cante comigo também meu canto, Eu só não quero cantar sozinho,
Eu quero um coro de passarinhos,Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar.(Roberto/Erasmo)

com carinho
Hana

ValériaC disse...

Meu querido que texto divino...que lições preciosas...
Deus é maravilhoso, é criativo, cria cada um de nós com seu próprio jeito e dons... para que nos complementemos, sigamos juntos crescendo...
Tenha um lindo final de semana amigo...beijinhos
Valéria

Marcia disse...

É justamente a convivência que nos torna menos "tomates" e aprendemos a sermos mais "cenouras".
Conviver e melhorar, com os bons exemplos também nos melhoramos.
Beijos no coracao alma amiga e um feliz final de semana!

Teresa Cristina disse...

Oiee!!
E viva as cenouras e o tempo certo do cozimento...infelizmente muitos ainda não compreenderem a arte do bem viver...tbém não entendem de cozinha, né?
Bjss♥

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Sempre uma grande mensagem, caro Jorge. Um abraço

Bloguinho da Zizi disse...

Jorge
estou sentindo sua falta.
Vim hoje aqui pra te oferecer um selinho de Natal do Bloguinho.
É uma maneira simples pra demonstrar minha gratidão àqueles que carinhosamente passam pelo lá e me deixam um pouco da sua energia.
E como vc é uma desss pessoas especiais, aqui estou pra te convidar a buscar o seu.
Um beijinho e minha gratidão.

Aparecida Miriam disse...

Que lindo Jorge! Acrescento o meu comentário a todos os outros maravilhosos que me precederam, e digo que nesse caso, além de humilde o Frei bartolomeu era sábio!
Bjs

Maria José Rezende de Lacerda disse...

Jorge, meu amigo. Que aprendamos a ser mais "cenouras". Beijos e boa semana.

Jorge disse...

Gislene,
é mesmo!!!

Beijo, Anjo!

Jorge disse...

Eliana,

infelizmente, é mais comum do que podemos imaginar, não é mesmo?

Beijo, Coração!

Jorge disse...

Sara,

veja a importância da cenoura.
Este conto é conjunto de ensinamentos baseados em um prato. Por isso vou continuara a comer macarronada....rs

Beijo, Anjo de Minas!

Jorge disse...

Zizi,

a arrogância dos que se acham demais, os tornam tão cegos que não conseguem se enxergar dos ridículos que se tornam.

Para pensar mesmo...

Beijo, Anjo!

Jorge disse...

Hana,

continue a cantar sempre prá alegrar nossos corações!!!

Irei te visitar em teu outro canto, sim!!!

Um beijo, Coração!

Jorge disse...

Eliane,

obrigado pelo carinho. Irei buscar o selo, sim.

Beijo, Anjo!

Jorge disse...

Valeria,
as misturas na nossa vida é que nos enriquecem pois são as diferenças que nos lapidam.

Um beijo, doce coração!

Jorge disse...

Teresa,
é, realmente não entendem de cozinha. É necessário ter talento para cozinhar, mas talento de Amor e compreensão.

Minha amiga, Beijo, de coração!

Jorge disse...

Marcia,

é mesmo.

Amiga d'alem mar, um super beijo em teu coração!

Jorge disse...

Carlos,

compartilhar mensagens reflexivas é compartilharmos o coração.

Um forte abraço, meu querido amigo!

Jorge disse...

Zizi,
assim fico sem jeito. O que me deixa feliz é esse carinho de vocês, amigos maravilhosos.
Minha amiga, tua amizade me é essencial, pois tua energia realmente me faz muito bem. Obrigado, sinceramente, pela sua amizade.

Beijo em teu maravilhoso coração!!!

Estarei passando pelo teu cantinho para pegar o selo.
Obrigado, de novo!!!
Beijo

Jorge disse...

Myriam

a humildade transforma o coração do homem em sábio.

Boa lembrança, Anjo!!!
Beijo

Jorge disse...

Maria Jose,

realmente. Inclusive, dizem que a cenoura faz bem à nossa vista. Então, ver melhor o nosso equilíbrio é sinal de consciência, não é mesmo?

Beijo, Coração!

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