domingo, 7 de abril de 2013

COMPENSAÇÃO


Hoje que queria abrir um álbum de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, não para sobreviverem eternamente, mas para mandarem seu retrato às amigas com finas letras de “sincera afeição”. Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Virgílio e Horácio, e não tinham medo de fantasmas do porão. De lá de dentro de seus retratos essas senhoras estariam dizendo: “Meus filhos, nada disso vale a pena...” (E saberíamos que falavam de parentes sôfregos, ávidos de partilhas, uns querendo herdar as terras do morro – outros, a mata; outros, a várzea – todos vivendo já do testamento, antes mesmo da extrema-unção...) Hoje eu queria ficar folheando este álbum, onde não desejaria encontrar aqueles herdeiros.
Hoje eu queria ler  uns livros que não falam de gente, mas só de bichos, de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza, sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades, elogios, celebrações... hoje eu queria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência autêntica, integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboleta nem abelha de permeio. Uma existência total, no seu mistério. (E antes da flor? – Não sei.).
Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria. Hoje eu queria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidade, na sua docilidade de ser e deixar de ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiante. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, busto no jardim... (Ó nuvens prodigiosas, criaturas efêmeras que estais tão alto e não pretendeis nada, e sois capazes de obscurecer o sol e de fazer frutificar a terra, e não tendes vaidade nenhuma nem apego a esses ocasos!) Hoje eu quereria andar lá em cima nas nuvens, com as nuvens, pelas nuvens, para as nuvens...
Hoje eu quereria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras: no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo, que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente. O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.
Hoje eu queria ser esse vento.


Cecília Meirelles


texto - internet
imagem - mais.uol.com.br

9 comentários:

Célia disse...

Hoje... ficou completo! Li Cecília Meireles em seu blog! Obrigada!
Abraço, Célia.

Denise Carreiro disse...

Um hino às belezas da natureza. Lindíssimo. Muita paz!

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Que postagem maravilhosa, amiga. Amo CVecília Meireles. Beijos

(CARLOS - MENINO BEIJA - FLOR) disse...

Amigo!

Sandra Portugal disse...

Amigo que bom encontrar Cecília Meireles aqui!!
bjs Sandra
www.projetandopessoas.com.br (novo site)
http://projetandopessoas.blogspot.com.br//

Anônimo disse...

Esse texto é muito lindo, sempre achei. E sempre li embevecida. Mas agora, não quero mais essas ilusões cecilianas para mim. Não mais. Eu agora quero coisas possíveis: compreensão entre as pessoas; harmonia, leveza. Uma vida sem afetações. Isso a gente pode conseguir, com trabalho e perseverança. Sem utopias. Bjs amigo.

Maria José Rezende de Lacerda disse...

Olá amigo Jorge. Gostei disso! Bjs.

Jorge disse...

Um beijo a todos vocês!!!!!!!!

Sandra Portugal disse...

Oi Jorge, rever a vida através de álbuns de fotografia... fortes emoções!
Passei por aqui para dizer que estou aguardando a sua sempre gentil visita no novo Site do Projetando Pessoas! Meu novo endereço é www.projetandopessoas.com.br, espero que goste e continue sempre por perto! E, por favor, não deixe de alterar o endereço no link na sua página! Agradecendo sempre sua parceria e companhia!
Sandra Portugal
www.projetandopessoas.com.br

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